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terça-feira, 23 de março de 2010

0 Uma fábula diferente

Vou contar uma história, que ouvi de minha mãe, que ouviu de minha avó e que, muitos de nós já ouvimos de tantas outras mães e avós espalhadas pelo mundo.

Em um imenso jardim habitavam em harmonia muitos bichos. Bichos grandes e pequenos, que voavam, andavam ou rastejavam e que moravam em tocas, ninhos e buracos. Era verão e durante todo o dia, trabalhavam incansavelmente todos eles: cortavam, transportavam e armazenavam alimento; pois o inverno naquelas paragens era rigoroso e quem não se precavesse certamente padeceria.

No entanto, o labor não era de todo fatigante. Os bichos trabalhavam alegremente embalados pela música da cigarra, que com seu violão pousava em um galho numa árvore próxima e cantava durante todo o dia. O momento era bom, o verão era festivo e a cigarra era amiga de todos.

Seus amigos, aliás, volta e meia alertavam-na: “Dona Cigarra, deixe de lado essa coisa de música, de cultura, venha trabalhar como nós todos fazemos!”. A cigarra se sentia envergonhada por alguns instantes, um peso e uma culpa por não estar na lavoura com os outros insetos pesavam sobre suas asas de celofane.

Mas, no outro dia, lá estava ela a cantar e alegrar a natureza. Ninguém conseguiria pensar um jardim sem a afinadíssima cigarrinha, que cantava de graça, sem cachê, sem nada. Cantar para Dona Cigarra era a única coisa que importava. A música era sua vida. Nasceu para aquilo e por aquilo morreria. Era mais forte que ela! Diferente dos outros cantores da natureza, como o grilo ou a esperança, que tinham outros meios de vida e cantavam por tantos motivos e se calavam por cautela, medo, cansaço. Também nunca teve palco e público, com tanta pompa como os artistas famosos: sabiá, canário e rouxinol, já com fama internacional. A cigarra cantava porque seu corpo pedia.

Chegou o terrível inverno e os bichos se abrigavam em suas casas, no conforto e tranqüilidade que seus trabalhos lhes proporcionaram. Menos a cigarrinha. Sem salário, nem cachê, a pobre cigarra possuía apenas seu talento e seu violão. Não tinha cartão de crédito, nem nunca pôde fazer um financiamento de uma casa pela Caixa. Sem eira, nem beira, a solução foi pedir. Procurou formigas, borboletas, lagartas, besouros. Em todas as portas que bateu, reprovação. A palavra mais leve que ouviu foi vagabunda. “Está vendo? Nós te avisamos que fosse trabalhar, mas quer viver de fazer cultura... Não vai a lugar algum. Poderia ter sido uma formiga engenheira ou uma abelha com produção em cooperativa, qualquer coisa que desse para sustentá-la”. Sem ter como sobreviver e sem auto-estima, a Dona Cigarra se lamentou por ser uma artista.

Desde criança, somos catequizados por histórias e canções que nos mostram a produção cultural como um aspecto menor e nunca como uma profissão, um modo de vida. Viver e fazer cultura são “coisas de marginal, desocupado...” Assim, crescemos com este pensamento incorporado às nossas opiniões, achando normal e justo que “Pai Francisco” só porque entrou numa roda de samba tocando seu violão, seja conduzido à prisão por “seu delegado” e espancado como um bandido. Delegado, aliás, que deve ter sido o mesmo que quebrou a cabeça do “Samba Lelê”, que só porque queria ser sambista estava merecendo umas boas palmadas.

Aquela nossa fábula se passa em nossos dias num jardim qualquer na Bahia. E a nossa cigarrinha, ao contrário de tantas outras cigarras, atores, artistas plásticos e cantadores, que morreram à míngua nos invernos culturais que sempre os afligiam - foi amparada pela Secretaria de Cultura, e, mesmo contra a vontade dos gafanhotos e traças, que viviam de comer os investimentos públicos em cultura do Estado, acabou montando um Ponto de Cultura em seu jardim.

Recentemente, as aranhas - que também têm um Ponto de Cultura voltado ao artesanato – organizaram um encontro da Teia dos Pontos de Cultura. Nele, a nossa Dona Cigarra se apresentou com um coral de pequenas cigarrinhas, suas alunas. Foram aplaudidas de pé. Alguma coisa começou a mudar.


Fonte: Blog do Ponto de Cultura Adilson Duarte (PCAD)
Texto: Júnior Pinheiro*
*Jornalista, Membro da Executiva dos Pontos de Cultura da Bahia,
Representate Territorial dos Pontos de Cultura (TMRC),
Coordenador de Comunicação do PCAD

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